As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

"As Histórias de João Pescador" - Mauro Guilherme

A Amazônia é grandiosa nos temas ambientais e folclóricos, mas não se resume a isso. Há uma diversidade de saberes e expressões nos mais variados segmentos culturais, históricos, tecnológicos e por aí afora. Tudo muito digno de divulgação, mas eu meus amigos, gosto de ouvir, conhecer, ver e ler sobre as coisas mais tradicionais - o cotidiano do folclórico ribeirinho - e desse contexto que apresento mais este livro "As Histórias de João Pescador", de Mauro Guilherme

O livro foi publicado em 2010 e narra as histórias de dois ribeirinhos: João Pescador, um pescador que não gosta de mentira, e seu grande amigo Zé Mutrica, que acredita em tudo o que ouve e conta histórias inacreditáveis. Ambos são caricatos - um caboclo macambúzio e o outro gaiato - que dominam os saberes de sua região e pouco ou nada sabem além dessas fronteiras (semelhante ao que vemos em todas as regiões). As histórias são ambientadas no Rio Peixe-boi (Pará), onde vivem aventuras em que as lendas, os animais, a floresta, a linguagem, enfim, o universo do caboclo da Amazônia vai surgindo nos contos e o humor se fazendo presente. 
São histórias sobre a onça, a sucuri, o Saci, a Mãe D’água, um casebre mal-assombrado, uma baleia, um menino e um peixe que não existe, um cachorro que João Pescador não quer, o sumiço de um cavalo baio, um gaúcho, um filósofo, um padre, um português e, ao final do livro, já sem os dois personagens, o Lobisomem aparece em um julgamento sobre sua morte, enquanto uma coruja desvenda um crime ocorrido na floresta. Trata-se do primeiro livro de literatura juvenil publicado pelo autor.

O Livro é:
Título: As Histórias de João Pescador
Autor: Mauro Guilherme
Editora: SCORTECCI
Páginas: 112
Ano: 2010
ISBN: 978-85-366-1776-3
Temas: Contos / Amazônia


O autor, Mauro Guilherme,  nasceu em Belém (PA) e mora no Amapá desde 1991. Suas obras já foram premiadas e também leitura em vestibulares. Publicou: "Reflexões Poéticas" (1998), "Humanidade Incendiada" (Poemas-2003), "Destino" (Romance-2007), "O Trem de Maria" (Contos-2008), "Histórias de Desamor" (Contos-2011) e "As Histórias de João Pescador" (Contos-2010). Este, por exemplo,  foi premiado no Concurso de Literatura Juvenil da União Brasileira de Escritores, RJ/2007. Tem também participação em três antologias literárias e é membro da Associação Amapaense de Escritores e da União Brasileira de Escritores.

(Informações de Scortecci Editora

Obra de VIANA (Pintura fotografada na Expofeira de Macapá/2012)
"João Pescador e Zé Mutrica"

- Ô João, que idéia boa foi nóis vim aqui pro rancho passá essa noite, olhá as estrela, vê o rir, dormí com os bicho, sentí o frir no corpo, acendê fuguêra, como nossos ancestrá.
- E as carapanã, tu num fala não?
- João, João! É muito feio carçoá de coisas tão bonita quanto esta.
- Eu não queria vim, mas tu tanto insistiu, que aqui tô eu num frio de congelá isquimó, num tem nenhuma estrela no cér, os bicho da mata num fazem nenhum som, porque certamente tão tudo encolhidos na suas casas, num dá prá vê o rir por causa da escuridão da noite sem estrela, levamo uma hora prá acendê a fogueira, pruque a madeira tava molhada, e ainda tem carapanã pra cachorro, como canta o galo lá de casa.
- Reclamá num é cristão, João! Olha o que aquele lá de cima nos deu. Vamo agradecê o que nóis temo.
- Sabe, tu tem razão, Zé Mutrica! Senhô, obrigado pelo frir de lascá, por esta noite sem estrela, pelos carapanã que tão ferrando a gente...
- Oia, joão, que Deus te castiga!
Nessa altura da conversa há um trovão.
- Num falei!
- Deixa de sê ingnorante, que isso num tem nda havê com Deus. Num sei explicá, mas é coisa da natureza. Nós num somo os índio, Zé, que morava por aqui, e acreditava nessas coisa. Trovão tem havê com nuvem e num sei mais o quê.
- É Deus ralhando! Eu sei que é, João, eu sei que é! Ele num gostô de tu reclamá da noite que ele deu pra nóis.
- Vem chuva aí!
- Se viê, é porque ele ficô tão triste, que vai chorá.
- Quem vai chorá!
- Aquele lá de cima!
- Se tu num pará com essas besteira, quem vai chorá é tu!
- Valha-me nossa senhora!
- Que foi?
- Lá vem elas, João!
- Elas quem?
- As lágrimas de Deus!
E num instante chegou a chuva. João Pescador e Zé Mutrica correram para se abrigar no rancho.
- Eta, João, que coisa boa, hein! Dormi com este friozinho, com a chuva batendo no teto do rancho, o vento assobiando, o chêro da mata...
- E as carapanã?
- De novo?
- Elas vieram se abrigá da chuva aqui dentro do rancho.
- São criatura de Deus, João, as coitadinha.
- Coitadinho de mim, que tô ficando sem sangue!
- Tu é pescadô, ô num é, João?... Pescadô num sente ferrada de carapanã.
- Eu só num sinto quando tô pescando.
- Ai!
- Que foi, Zé!
- Elas me pegaram!
- Tu num é pescadô?
- Sô, mas essa deve de sê canibar. Num ferra, morde.
- Vamo acendê as porronca. Quero vê se elas ainda se aproxima.
- Ô porronca boa, em João?
- Sô de concordá contigo, Zé!
- Tu tinha razão, elas nem chegam perto.
- É a fumaça. Sabe aquele perssoá do exécito, que vem de vez em quando praqui, Zé?
- Sei!
- Os recuta num deixa de trazê cigarro, mêmo que não fume, se não num aguenta.
- E depois da gente ir dormir? Num dá prá fumá dormindo!
- A gente se cobre dos pé à cabeça.
- É memo, João, tinha  me esquecido. Tu conhece aquela piada do homi que queria se livrá das carapanã?
- Conheço não!
- O homi num podia dormí por causa das carapanã, que toda noite invadia seu quarto. Então, ele foi num dotô prá vê se rumava um jeito de se livrá delas. 
- Pera aí! O que é que tem havê dotô com carapanã?
- Eu num sei, mar a piada é assim mêmo. Vai vê que era um dotô de carapanã!
- Isso num existe!
- Existe, sim, João, existe! Minha prima que mora na capitar, veio um dia desses aqui, e disse que existe. Tem dotô lá pra tudo.
- Num existe!
- Tu qué ouví a piada ou num qué?
- Num quero!
- Como eu ia dizendo, o homi foi num dotô, e depois de contá tudo pra ele, o dotô disse: Sê dorme de luz acesa? O homi respondeu: Durmo! Então é isso - disse o dotô. É só apagá a luz, que elas num vêm mais. O homi foi pra casa feliz da vida. Num dormia há três noite por causa das carapanã. Quando foi de noite, apagô a luz. Aí começou a sentí as ferrada e ouví os mesmo zumbido. Por coincidênça, nesse mesmo dia tinha entrado no quarto um bando de vaga-lume. No outro dia o homi foi de novo no dotô, desalentado: E aí seu Binha - era o nome do homi -, como é que foi? Num adiantô nada, dotô. Elas vieram de lanterna.
- ....................................................................
- Tu num vai rir, não?
- ....................................................................
- Tu num entendi de piada mêmo. Tu é um bronco, um filho de uma cascavé, um macaco-prego, um filhote de porco-espinho, primo da mula-sem-cabeça, tomara que a mãe-d'água te pegue, a cobra grande te leve, o mapinguari te coma...
- ....................................................................
- Eu vô dormí!
E Zé Mutrica, muito invocado, virou para o outro lado e dormiu.
João Pescador ficou fumando sua porronca dentro do rancho, lembrando da piada do Zé. Ele já não tinha gostado daquela parte do doutor de carapanã, e ainda veio aquela outra de carapanã com lanterna! "Que homi seria tolo prá acreditá nisso?" - pensava. Aí a piada, que já estava insossa para ele, perdeu toda a graça. É que ele era João Pescador, mas não gostava de mentira.

Texto de Mauro Guilherme publicado em "As Histórias de João Pescador".

Obra de HERIVELTO MACIEL (Pintura fotografada em exposição no IBAMA-AP/2012)
Mais informações sobre o autor em: