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quarta-feira, 11 de maio de 2011

HISTÓRIAS DA VÓ NIKITA - A História do Gonçalo

  "Barracão" - Fiz esse desenho com 15 anos (1988)

Mistérios e mistérios... pode-se dizer assim, quando se vive em uma região tão grande em encantos naturais, quanto em desconhecimento dos fatos presentes nas coisas  cotidianas que nos cercam. Assim é a Amazônia. 
Quando observo hoje todas as mídias disponíveis... cheia de bites, banda larga, High definition e o que mais for... num mundo de informações rápidas e à disposição fácil...vejo esse desconhecimento muito presente em grande parte da população sobre essas bandas de cá.
Há quem pense que aqui só tem índio, onça na rua, ou nem tenha civilização. Parece ridículo, mas é no que muitos acreditam, nesse mundo globalizado e evoluído.
Oras! Se hoje há tanta suposição, que dizer de uma Amazônia de trinta, setenta... cem ou mais anos atrás! Povoada de cidadãos sem a metade das condições e oportunidades hoje a nós oferecida.
Um lugar triplicado em mistérios, onde as histórias eram contadas e passadas, não como simples engodo, mas...de certa forma....como orientação e aprendizagem nas famílias.
Meus avós me contavam essas histórias... por serem as personagens ou por terem ouvido de seus pais. Sempre gostei de ouvi-las e deixo nestas linhas um pouco desse passado a se extinguir em todas as mentes... mas que formaram a nossa identidade cultural.
Ana, minha tataraseiláoquevó, contou a sua filha Tereza, que contou a sua filha Marieta, que contou a minha avó Ana – Nikita para os íntimos - que foi quem me contou. Será mais um dos muitos delírios daqueles tempos... sei lá? Mas coisas sempre ocorriam e a informação, em todas as épocas, é sempre fundamento vital para nossa existência.  

Aconteceu há mais de cem anos lá no rio Jacaré Grande. O Gonçalo tinha um barracão onde morava com sua família (de nomes, só sobrou a lembrança de sua filha Raimunda). Era um sujeito pacato e trabalhador em um comércio próximo, caracterizado por apresentar um trapiche muito grande na frente. Local para atracação e descarga de mercadorias.
Num lugar em que os lampiões e lamparinas reinavam todas as noites, era costume dormir cedo, de manhã todos tinham muito o que fazer. Cedinho ir pescar, lavar roupa no igarapé, tirar açaí...tanta coisa, tanta coisa.  
Foi por volta das 18 h que se iniciou essa história. Raimunda estava um dia sozinha lá na ponta do trapichão... espairecia um pouco da lida para tratar de se recolher ao seu barracão. Televisão, novelas? Ah! Isso era uma uma regalia para gerações futuras. O lugar era ermo e sossegado. Na boca da noite poucos vinham em busca de mantimentos no comércio pertinho.
Até que um dia... Murmúrios, movimentos próximos, Raimunda voltou sua atenção para as bandas de um aningal. Não era comum agito por ali, cheio de poraquês e carapanãs a esta hora, quem poderia se meter ali? Só podia ser ladrão, querendo roubar o comércio... Foi o que pensou.
Quase em seguida, eis que surge uma "montaria", mas não uma qualquer, era dessas de dar gosto de ver e passear. Bem feita e pintada, mas também diferente por apresentar três homens muito bem alinhados, com terno branco e chapéu de couro com uma fita preta. Sujeitos nunca vistos antes. Remaram até sumir na primeira curva do rio.
Vô Apolinário e Vó Ana (1998)
Raimunda recolheu-se ao barracão e contou os fatos ao Gonçalo, seu pai. Evidentemente o homem ficou cismado, pois conhecia todo mundo naquelas paragens e nada sabia dos sujeitos.
Na hora de maior sono, palmas em frente à casa. Gonçalo pulou da cama e foi verificar, nada de gente! E palmas novamente! O homem começou a ficar bravo e espraguejar, principalmente pelas pedradas seguidas que se iniciaram sobre a casa. Só pode ser moleque, certamente esses rapazes que sua filha viu e que deveriam estar com ela para roubar-lhe e sumir no mundo. A cada pedrada e palmas o homem ficava mais furioso ainda, a ponto de dicutir ferrenhamente com seus parentes. Gritava, espraguejava, e queria agredir sua filha, a quem sempre acusava. Para maior espanto de seus familiares, qual a razão disso? Já que nada viam ou ouviam!
O Gonçalo estava transformado, parecia não ser o mesmo. Só quando suas forças se esgotaram que dormiu profundamente, para alívio de todos, tão assustados e sem o porquê da situação.
Os dias seguintes não foram mais os mesmos..... Gonçalo entrara numa situação de abatimento profundo. Pouco falava, desinteressado de tudo e com longas horas falando baixinho e sozinho. Buscavam e imaginavam causas a essa “panemagem” mas, em terras onde acreditava-se em uiara e matinta-pereira, de benzedeiras e pajelanças (únicos meios de se agarrar a uma “assistência em saúde”) logo se mitificou a situação. Lembraram da história da Raimunda e dos rapazes desconhecidos e concluíram: Só poderiam ser botos “mundiando” mais uma pobre alma para  carregá-la a seu mundo encantado. 
Talvez por quererem ver, acreditarem sinceramente nestas coisas, houve muitos relatos de verem o Gonçalo, que gostava de ficar sozinho na ponta do trapiche, estar sempre acompanhado e conversando com três rapazes. Uns contaram até que avistaram um deles pulando na água e sumindo, aparecendo logo em seguida um boto. Diga-se aqui que era comum botos transitarem por essas paragens, principalmente nos horários de menor movimento, como no entardecer e perto do trapiche...tão avançado no rio.  
Acreditando-se ou não, diante do sentimento de impossibilidade de curar o Gonçalo, deixaram-no com suas “visagens” e sempre um frio percorria o corpo de quem avistava-o no trapiche “conversando com os botos”, de quem já era encantado!

Mistérios na Amazônia... Verdade ou mentira, ficou o fato do Gonçalo morrer pouquíssimo tempo depois e, naquele trapiche, ninguém querer circular sozinho à noite.

Você talvez estranhe essa história, não são os botos vistos sempre como conquistadores? Sim, mas ali, na mente de todos era mais que isso, eram símbolos de morte quando simpatizavam com a alma de alguém. Acreditou-se por muito tempo nisso e, de boato em boato, aí está mais um fato marcante na história e agir de todos daquele lugar e tempo... um pouco acima das três bocas, tantos anos atrás, lá nas margens do Jacaré grande!!

"Barracão" - Desenho de Isabelly (9 anos), miha sobrinha (2011)

sábado, 7 de maio de 2011

Histórias da Vó Nikita - Encontro com botos no rio Jacaré Grande

"A cultura brasileira é vasta e rica no campo das lendas. Devemos considerar que lenda não significa necessariamente uma mentira, e nem uma verdade absoluta. O que podemos e devemos deduzir é que uma história para ser criada, defendida e o mais importante, ter sobrevivido na memória das pessoas, deve ter no mínimo um pouco de fatos verídicos. Um fator desconhecido ao qual deu-se livres interpretações, todas procurando elucidar os fatos e criando assim um conhecimento aceitável pela grande massa...desejosa de entendimento."
No Amapá, como não poderia ser diferente, temos muitas lendas, repassadas por nossos avós, pais ou conhecidos. Histórias e estórias que traduzem um saber local e que caracterizaram nossa identidade cultura.
Quando converso com minha avó Ana (Nikita) e lembrando das histórias de meu saudoso avô Apolinário (Branco Velho), esses fatos tornam-se bastante evidentes.
Uma das histórias presentes em minhas lembranças é a seguinte...
Lá pelos idos de 1930, época sem eletricidade nas casas, nem escola para as crianças ribeirinhas, de muita peleja desde cedo e  sobrevivência árdua numa terra de exuberâncias e mistérios naturais, às margens do rio Jacaré Grande, interior do Pará, viviam Alexandre, sua esposa Marieta e os filhos Nilzinho, Lóla, Ana, Mundinha, Raimundo e Lourival. Algo comum naquele mundaréu de selva, onde tantas famílias viviam de maneira muita parecida, a não ser pelos fatos que rotineiramente as cercavam e que se mitificaram nas descrições que hoje chegam a nós.
Aquele foi um dia difícil e de pânico para minha avó e seus irmãos, um dos dias em que meu bisavô levava a família para visitar seus parentes numa localidade próxima, distante várias remadas.
Como homem prudente que era, Alexandre escolheu o melhor “casco” e minha bisavó Marieta cedo arrumou a garotada, diga-se de passagem, sempre animada em dias como esse.
Todos na “montaria” e remos para que te quero! 
Logo, logo, um evento nunca visto por eles começou a se desenrolar.
Primeiro foi um boto.....boiou ali perto e desapareceu. Depois foram dois, com manobras espetaculares como a se exibir....três, quatro, todos se aproximando e seguindo a canoa.   
Eram botos vermelhos (também chamados de malhados, hoje boto rosa) e, segundo minha avó, esses  animais eram temidos pelos caboclos, talvez pelo tamanho, mas sobretudo pelo desconhecimento. Minha avó dizia que dos botos tucuxis não tinham medo, eles até espantavam os vermelhos dali. Mas destes últimos... Ah! Era um medo de sair da água na hora que apareciam.
Enfim, um frenesi instalou-se ao redor da canoa, quase não dava para remar, eram a essa altura vários e pulavam muito rente. Exibiam a cauda, pulavam dois, três juntos e tão próximos que balançavam o casco. Para minha avó, ver aquelas cabeçonas vermelhas de perto no meio do rio era algo apavorante. Oras, vemos um quadro de dificuldades àquela família, com a criançada eufórica e meu bisavô tentando afastá-los dali. Ficou pior quando começaram a passar por baixo da canoa e bater no fundo dela, balançando ainda mais até quase virar. Imagine aquelas silhuetas todas aparecendo e sumindo por todos os lados que nem uns fantasmas. A família segurava as bordas para a canoa não virar e os botos continuavam pulando e batendo. Isso durou alguns minutos até que Alexandre, detentor do conhecimento para a situação, com seu facão fez uma cruz imaginária na água e, com algumas palavras de oração, espetou este no meio da canoa. Não sei o porquê disso, mas o fato resultante é que na hora os botos mergulharam e boiaram bem longe, se afastando definitivamente.
Esse foi o fato narrado por minha vozinha e, cá com meus botões em pleno século XXI (não sou nenhum biólogo) também não sei a razão disso tudo, mas sei que de histórias como esta é que foram construídas as lendas que chegam até nós. Oras, não dá para imaginar que os botos queriam virar a canoa e levá-los encantados para o fundo do rio?  Digo apenas que a história é esta e a continuidade disso está na sua imaginação!!!!